
O “Pontão” do Coentral em 1944
Coentral… há imagens que transcendem o simples registo visual. Há imagens que se tornam janelas capazes de nos transportar para um tempo que já não existe, devolvendo-nos, mesmo que por instantes, ao pulsar de um modo de vida perdido. Esta imagem de 1944 mostra-nos o encontro da Ribeira do Cavalete, também conhecida como Ribeira do Vale dos Lobos, com a Ribeira do Coentral. Captada numa época em que o quotidiano se moldava ao ritmo da terra, da água, do sol e das mãos humanas. Esta fotografia torna-se mais do que uma recordação, é uma peça emocional e histórica do património do Coentral e de Castanheira de Pera.
O “pontão”, situa-se entre o Coentral Grande e o Coentral “Pequeno”, o Coentral das Barreiras e o Coentral do Fojo. Para a escola primária, a pé, muita travessia sobre a ribeira nesta ponte. Nesta imagem, pelo seu enquadramento, é-nos revelado um cenário que, para muitos habitantes e descendentes, só existia em memórias contadas ou livros.
A década de 40 foi uma época de trabalho árduo. As famílias do Coentral, tal como de tantas aldeias serranas, viviam essencialmente da agricultura, da pastorícia e da força do seu próprio engenho. Os dias eram ditados pela necessidade de aproveitar ao máximo cada recurso. A água para mover os moinhos, as encostas para o pasto, as pedras para erguer abrigos, delimitar os terrenos e talvez os fojos. Não havia excessos, havia apenas o necessário. Mas havia, sobretudo, uma ligação profunda à paisagem, porque era dela que nascia tudo o que sustentava a vida no Coentral.
Nesta fotografia, essa ligação está impressa em cada detalhe. O caminho ainda em pedra, o pontão robusto construído também em pedra, ainda sem alcatrão, os muros que dividiam os campos, o pequeno moinho e a casa hoje reconstruída. Tudo isto compõe um retrato fiel da ruralidade serrana de então. São elementos que nos falam de uma forma de viver que dependia da proximidade, da entreajuda e do conhecimento transmitido de geração em geração.
Um dos aspectos mais marcantes desta imagem é precisamente aquilo que não está nela. O moinho em perfeitas condições, elemento que sublinha a pureza da paisagem original da época. Em 1944, a interação humana com o território era funcional. O que vemos nesta imagem é uma terra quase intocada, nem a pequena pedreira vemos na imagem. A intervenção humana limitava-se ao essencial, aos caminhos, muros, abrigos e pequenas estruturas de apoio ao trabalho agrícola e à circulação como a Selada do Cavalete.
Se hoje a existência da pequena pedreira faz parte da memória um pouco mais recente, esta fotografia recorda-nos que houve um tempo em que tudo era mais silencioso, mais orgânico e mais natural. E é justamente essa pureza que desperta em nós um sentimento nostálgico, mesmo para quem nunca viveu nesta época. É um apelo da autenticidade.
A casa que surge na fotografia, hoje está ainda íntegra e bem cuidada, é um símbolo de resiliência e de uma migração contemporânea. Representa o mesmo espírito de funcionalidade. Não eram construções pensadas para impressionar, mas para resistir ao clima e ao tempo, feitas em pedra local, integradas de forma harmoniosa na paisagem. Já os moinhos eram centros vitais da comunidade. Eram nos moinhos que os cereais se transformavam em farinha, e era também ali que as pessoas se encontravam, trocavam notícias, aguardavam a sua vez, partilhavam a vida. Ver o moinho ainda operacional em 1944 reforça a importância social que este espaço teve durante décadas. Hoje estão praticamente todos em ruínas. Mas há ainda uma presença silenciosa, a ruína na Selada do Cavalete, claramente visível na fotografia e hoje completamente desaparecida. Restam-lhe apenas sombras na memória coletiva.
O verdadeiro poder desta imagem reside na sua capacidade de nos permitir ver um local que já não existe aos nossos olhos de hoje. Esta imagem não só documenta uma paisagem, como preserva um fragmento inteiro de identidade cultural com mais de 80 anos. É uma âncora que liga o presente ao passado, uma oportunidade de contemplar, com profundidade, a evolução de uma comunidade e do seu território.
Há algo de profundamente humano na forma como percebemos fotografias antigas. É como se tocássemos o tempo, num tempo que alguém também o congelou. Esta imagem, captada numa era em que poucas pessoas tinham acesso a máquinas fotográficas, tem ainda mais valor precisamente por ser rara. Não foi tirada como um ato banal, mas sim como algo excecional. E, por isso, hoje tem a capacidade de nos emocionar, de nos fazer refletir e de nos devolver, mesmo que por alguns instantes, ao silêncio de uma época e ao ritmo lento de uma época.
Parabéns ao autor, Carvalho 1944
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